Se um dia a revisse dir-lhe-ia que aquela aula de português, sem que na altura me tivesse apercebido, mudou de alguma forma a minha vida, ou pelo menos a forma de ver e de me ver no mundo. 
Tínhamos onze, doze anos, quando nos pediu que a seguíssemos até ao campo de jogos. A partir dali distribui-nos por vários pontos da escola. Sentou-nos no chão, um por um, e pediu-nos que olhássemos. E que escrevêssemos o que viam os olhos e o que sentia a alma. Naquele lugar, naquele tempo muito concreto. Hoje se voltasse à escola saberia perfeitamente onde estive sentada na terra há mais de dez anos - por detrás da estufa que cuidávamos na aulas de formação cívica, entre os arbustos sempre por aparar, virada para o prédio onde hoje existe uma das confeitarias mais frequentadas da cidade. Lembro-me de apenas conseguir ver a os últimos andares do prédio. Era pequenina de altura, como aliás nunca deixei de ser, e o arbusto diante de mim toldava-me grande parte do cenário. Aquelas eram as minhas circunstâncias - a parte de um todo, uma verdade de muitas verdades. Lembro-me de na altura ter ficado verdadeiramente triste, sabia que a vida corria por detrás do arbusto e que aqueles que estavam sentados no topo dos monte, como lhe chamávamos, tinham o mundo real aos pés. Conhecia bem o vaivém de carros na avenida, os velhinhos que por certo viriam da churrascaria por aquela hora com o almoço prontinho no saco branco, os pais sempre adiantados que fariam horas junto às grades da escola até que a campainha tocasse. Contudo, tudo o que me sobrava era uma fachada castanha, interrompida por algumas janelas. O sol àquela hora não permitia que se visse através delas. 

Hoje sempre que passo pelo prédio, levanto o olhar, e pergunto-me se aqueles que imaginei um dia viverem ali já trocaram de casa ou se ainda ali estão. Se ainda choram e se ainda riem. Se ainda dançam a música favorita quando toca na rádio e se ainda se aninham no sofá no final de um dia menos bom. Se ainda vão a funerais e se ainda vão a batizados. 

Naquele dia aprendi que por detrás de cada fachada há alguém com uma história. E que cada pessoa pode ser a fachada e a história. Depende se olhamos para dentro. Depende se olhamos para fora. Ainda hoje não sei se quem vivia naquele dia, naquela hora, naquele prédio, não seria eu, escondida por detrás da minha fachada. Hoje, como naquele dia, para além da fachada, sobra-me ainda a imensidão do céu e tudo o que nele cabe.

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